Enquanto Israel dormia

 



Livro disseca as falhas da defesa israelense no fatídico 7 de outubro. Dagomir Marquezi para a revista Oeste:


Israel é visto pelo resto do mundo como um superpaís. As vitórias em guerras contra países muito maiores, o trabalho da agência de inteligência Mossad, o estágio superior de sua tecnologia militar, a posse (não confirmada) de armas nucleares — tudo isso deu ao país uma aura de quase invencibilidade.

No entanto, em 7 de outubro de 2023, com todo o seu poder, Israel ficou paralisado por uma turba de terroristas do Hamas, a organização criminosa que domina a vizinha faixa de Gaza. No final daquele dia, a contagem foi trágica: 1,2 mil mortos, 251 sequestrados, dezenas de milhares de feridos. Os super-heróis com a Estrela de Davi haviam falhado.

Os detalhes do dia que chocou o mundo civilizado estão no livro While Israel Slept (“Enquanto Israel dormia”), escrito pelos jornalistas Yaakov Katz e Amir Bohbot. A grande arma do Hamas foi convencer os israelenses de que não queriam mais lutar, de que estavam contentes em faturar os milhões de dólares enviados pelo governo do Catar a título de ajuda humanitária. Israel se acomodou.

A grande motivação para o ataque foi a onda de mudanças pacíficas no Oriente Médio. Países árabes sunitas, como os Emirados Árabes Unidos, o Bahrein e o Marrocos haviam normalizado relações diplomáticas com Israel três anos antes. A Arábia Saudita ia pelo mesmo caminho. Os governos do Egito e da Jordânia estavam cansados dos encrenqueiros do Hamas.

Esse clima de pacificação era ruim para o Hamas, que só cresce na condição de vítima. O líder da organização, Yahya Sinwar, provocava Israel com ataques pontuais, e sempre perdia. Para cada israelense morto, cinco palestinos eram eliminados. Ele então planejou um ato dramático para levar Israel de volta à guerra. E incentivou seus combatentes a usarem seus instintos mais primitivos.

Capa do livro While Israel Slept, escrito pelos jornalistas Yaakov Katz e Amir Bohbot 


Alguns poucos tanques e helicópteros

Em seu livro, Yaakov Katz e Amir Bohbot colocam três razões para que Israel fosse pego de surpresa: 1) a falta de percepção da inteligência israelense dos planos do Hamas; 2) o colapso da condição de alerta na defesa de fronteira; e 3) a falha no armamento dessas forças.

Os sinais de alerta começaram às 22h de sexta, 6 de outubro. Dezenas de membros do Hamas ligaram, ao mesmo tempo, seus celulares equipados com chips israelenses, fazendo o tráfego de chamadas dar um salto. Os comandantes do Shin Bet (o órgão de segurança interna de Israel) perceberam o movimento — mas não deram a devida importância. Afinal, esse pico de conexão já havia acontecido antes. Depois, foi descoberto que os comandantes terroristas estavam habilitando os celulares para coordenar suas ações dentro do território israelense.

Essa falta de reação do Shin Bet acabou desmobilizando a possibilidade de uma ação militar do Comando Sul e da Divisão Gaza, encarregados da defesa na fronteira. “Se [o Shin Bet] não tivesse amarrado as mãos da Divisão Gaza”, conclui o livro, “é possível que o deslocamento de tanques adicionais pela fronteira ou o envio de dois ou mais helicópteros tivesse sido o suficiente para sinalizar ao Hamas que Israel estava atento ao ataque que o grupo estava planejando. Poderia ter sido o suficiente para levar o Hamas a reconsiderar seus planos para a manhã seguinte”.

Outra falha grave: “Entre os milhares de terroristas se preparando para atravessar a fronteira, não havia um único espião israelense infiltrado ou uma fonte interna de informação”. A inteligência israelense estava dependente demais de drones e gadgets.

A unidade Tequila

Às 3h30 da madrugada do dia 7, os quatro batalhões israelenses da Divisão Gaza estavam em repouso. Muitos dos seus comandantes estavam aproveitando o feriado em casa. Às 3h45, soldados da Unidade 8200 (encarregada da inteligência eletrônica) receberam um comunicado de um batalhão feminino responsável por vigiar a fronteira.

O Shin Bet resolveu mandar uma unidade conhecida como “Tequila” para a fronteira com Gaza. O apelido foi estabelecido porque suas unidades agem em doses rápidas com efeitos significativos. Às 4h15, a conclusão dos oficiais israelenses era de que o Hamas estava fazendo um treinamento. A unidade Tequila foi colocada discretamente para vigiar a fronteira. Havia apenas um “mau pressentimento” para Ronen Bar, o chefe do Shin Bet.

Às 6h29, uma chuva de foguetes lançados pelo Hamas sobrevoa a fronteira de Gaza em direção a Tel Aviv. Ronen Bar teme que seja um truque para que o Hamas sequestre alguns soldados. Na prática, Israel continuava dormindo.

A essa altura, Avi Rosenfeld, o comandante da Divisão Gaza, já havia despertado para a dura realidade. Três mil terroristas do Hamas estavam promovendo uma invasão em massa em mais de 60 pontos da fronteira com Israel. O desprotegido batalhão feminino de fronteira que deu o primeiro alerta foi uma das primeiras vítimas. A Divisão Gaza declarou o código de emergência “Cavaleiro Turco” pedindo reforços imediatos.

Mas o reforço demorou demais. A essa altura, a situação era descrita como o título da mais conhecida série de TV israelense: Fauda (“Caos”).

Soldados israelenses prestam homenagem aos mortos durante o ataque terrorista no festival NOVA, realizado em 7 de outubro de 2023

“Não há ninguém aqui para nos ajudar”

Só às 7h as autoridades foram avisadas de que o Hamas estava promovendo uma carnificina entre os frequentadores do festival de música Nova. Ao ver as horríveis imagens das câmeras de segurança, Avi Rosenfeld teve que tomar uma de suas mais difíceis decisões: ordenar que um helicóptero atirasse mísseis nos terroristas, mesmo se estivessem próximos a civis.

Às 7h10, os militantes do Hamas conseguem o que parecia impossível: penetraram no quartel general da Divisão Gaza. Se eles cortassem a comunicação entre a divisão local e o comando central, a situação se tornaria incontrolável. Os israelenses estavam completamente desorientados. A primeira atitude da Força Aérea foi bombardear os túneis clandestinos do Hamas, que nem foram usados pelos invasores.

Pouco depois das 7h, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu foi avisado: estamos em guerra. Não havia um relatório oficial da inteligência israelense. Netanyahu teve que ligar para o primo de um de seus assessores para se informar. “Centenas de terroristas estão atacando Be’eri e não há ninguém aqui para ajudar”, disse a testemunha, em pânico. “Vocês devem vir aqui imediatamente com forças, agora mesmo”. Quando o frágil socorro chegou a Be’eri, 101 membros do kibutz haviam sido mortos e outros 30 levados como reféns.

“Matar purifica a alma”

As coisas poderiam ter sido muito piores. Documentos encontrados mais tarde mostraram que o plano original incluía um ataque coordenado com o grupo Hezbollah, o que colocaria a sobrevivência do país em jogo. A sorte de Israel é que Yahya Sinwar, o líder do Hamas, era tão vaidoso que não quis dividir a glória do ataque com outra organização terrorista.

Conforme os invasores iam sendo capturados ou mortos, seus segredos eram revelados. Estavam preparados para uma longa permanência. Carregavam fuzis, granadas, equipamento médico, facões, mapas dos kibutzim, plantas das bases militares com as salas dos comandantes assinaladas. Carregavam também um livrinho com frases em hebraico para sequestros, como “tire suas roupas” e “crianças aqui, mulheres ali”.

Os terroristas levavam as ordens “religiosas” chamadas fatwas. Eram essas fatwas que permitiam moralmente que eles tivessem total liberdade para estuprar e até abusar dos cadáveres. Um documento de Abdullah Azzam, fundador da Al-Qaeda, garantia que o ato de matar “purifica a alma”.

“Uma enchente estrondosa”

Em 20 de novembro de 2022, o ministro da Defesa recebeu um livro do Hamas intitulado Muralhas de Jericó, escrito naquele mesmo ano. Toda a concepção do 7 de outubro estava registrada nesse livrinho, que circulou por um ano sem que a inteligência israelense desse importância.

Em julho, uma analista de elite da Unidade 8200 (de inteligência eletrônica) testemunhou um ensaio do Hamas para a ação de 7 de outubro. Ela comunicou a descoberta aos seus superiores, que responderam que era apenas um show de força para arrancar concessões de Israel. A analista insistiu em uma série de e-mails para várias autoridades. Nenhuma resposta.

No dia 5 de outubro, o premiê Netanyahu fez uma reunião com líderes dos órgãos de inteligência civil e militar. Estavam todos relaxados, de calça jeans e camiseta. Os e-mails da analista da Unidade 8200 não foram citados. Isso a apenas dois dias do ataque. Gaza, na opinião geral, permaneceria calma, com o Hamas se fartando com o dinheiro que fluia do Catar.

Em dezembro de 2016, o ministro da Defesa, Avigdor Lieberman, já havia escrito um relatório chamado A Situação da Faixa de Gaza. Lieberman previa o que aconteceria em 2023 em detalhes, e insistia num ataque preventivo ao Hamas. Mas Lieberman era um político de “extrema-direita” e, portanto, não deveria ser levado muito a sério.

O próprio mentor do ataque, Yahya Sinwar, havia deixado claro aos israelenses no início de 2023: “Iremos até vocês, se Deus quiser, em uma enchente estrondosa. Iremos até vocês com foguetes sem fim, iremos até vocês em uma enxurrada ilimitada de soldados, iremos até vocês com milhões de nossos homens, como a maré que se repete.” Ninguém deu muita bola.
O líder do Hamas, Yahya Sinwar, discursa durante uma conferência na cidade de Gaza, em 4 de novembro de 2019 

Israel desperta

O livro While Israel Slept mostra que a reação do país também foi complicada. As Forças Armadas tinham medo das consequências de invadir a Faixa de Gaza — lugar transformado num inferno de túneis e armadilhas onde a população civil era usada como escudo pelos terroristas e doutrinada desde criança a matar judeus.

Foram necessárias muita determinação e liderança do governo israelense para mudar essa mentalidade, reverter a situação e entender que o Hamas não podia ser pacificado. Tinha que ser destruído na sua totalidade, sem trégua nem piedade.

Os autores não chegam a comentar um dos pontos mais trágicos dessa história: o fato de os monstros que inundaram Israel de sangue no dia 7 de outubro desencadearem a maior onda de antissemitismo global desde a queda do Terceiro Reich de Adolf Hitler. Hoje, os criminosos sem limites do Hamas — apoiados por multidões de manifestantes nos EUA e na Europa e protegidos pelos maiores órgãos da grande imprensa — ganharam a solidariedade de astros do cinema e o apoio de governos como o do Brasil.

Mas Israel aprendeu a lição e está fazendo sua parte.





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