Sou a santa do rock (16/01/1985, Páginas Amarelas de VEJA)
Por Roberto Garcia
Bonita como uma atriz de cinema, explosiva como uma estrela de ópera, a cantora Nina Hagen, aos 29 anos, é a última grande diva que surgiu em Berlim. Com suas canções de letras irônicas, possantes efeitos vocais e inesperados arranjos, ela já vendeu mais de 1 milhão de discos na Alemanha Ocidental e conseguiu vender 2 milhões de exemplares de um único LP, Angstlos (Sem Medo), cantado em alemão, nos Estados Unidos. Quando Nina surgiu, em 1976, engatinhava na Europa o movimento punk. Ela aproveitou o visual dos punks, usou a sua sólida formação de canto de anos em academias alemãs, fez uma mistura básica de rock, jazz, soul americano e até sons dançantes de new wave. Resultado: transformou-se numa artista original, com surpresas a cada disco e a cada novo show, tornando-se uma das presenças mais exóticas dos palcos mundiais.
Mas, sobretudo, Nina Hagen é a primeira cantora de rock nascida e criada em um país comunista a se tornar estrelíssima no mundo ocidental. Filha de uma atriz, Eva Maria Hagen, e do escritor Hans Hagen, logo separados, ela acompanhou na adolescência a turbulenta ligação de sua mãe com o astro da canção de protesto da Alemanha Oriental, Wolf Biermann. Foi para acompanhar seu padastro, expulso para Berlim Ocidental, que Nina renunciou à sua cidadania, passou também para o outro lado do muro e então, em 1976, conseguiu gravar seu primeiro disco pela CBS.
Nina não tem preconceitos quanto a repertório. Relembra antigas cantoras como a alemã Zarah Leander ou a francesa Édith Piaf, interpreta músicas de David Bowie e tem um formidável arsenal de suas próprias composições. Atualmente ela mora em Los Angeles, só com a filha Cosma Shiva Hagen, de 3 anos e meio – fruto de sua rápida união com o holandês Ferdinand Karmelk, guitarrista do conjunto que costumava acompanhá-la em suas apresentações. Nina explica com a maior naturalidade ter escolhido o nome da filha depois que viu um disco voador. Também conta que após o nascimento da menina ela sentiu necessidade de fazer uma limpeza espiritual, raspou o cabelo multicolorido e fez vários videoteipes vestida de homem. Aos poucos, porém, a cantora voltou ao seu exótico normal.
Cosma Shiva e uma babá búlgara, naturalizada austríaca, também acompanham Nina Hagen em todas as suas viagens, inclusive ao Brasil, e assistem a todos os shows dos camarins. Logo após o Rock in Rio[1], aliás, Nina também virá a São Paulo para duas apresentações. Nos dias 22 e 23, ela se apresentará numa danceteria em forma de caravela – a Latitude 3001 – para um público de 600 pessoas (com ingressos a 100 000 e 120 000 cruzeiros)[2], antes de seguir para mais duas noites em Buenos Aires. Nina Hagen viaja com uma equipe de dezesseis pessoas, exige comida vegetariana e faz questão de não ter bebidas alcoólicas no seu camarim. Foi em Los Angeles, entre músicos e técnicos de efeitos especiais que preparavam o que trazer na excursão ao Brasil, que falou a VEJA:
Eu quero que
me olhem
me olhem
VEJA – Por que você usa tranças de plástico verde na cabeça?
NINA – São um símbolo de esperança. E são longas simplesmente porque também é grande minha esperança de que não morreremos numa guerra nuclear, de que nossos animais, peixes e pássaros não vão morrer asfixiados por enormes nuvens de poluição. Mas veja que não tenho só o verde. A parte de trás de meus cabelos é pintada de vermelho-púrpura, cor muito espiritual. Sempre achei muita graça em ter uma retaguarda espiritual. E combina, fica bonito.
VEJA – A calça colante, esta sainha de gaze, os sapatos de salto alto, tudo vermelho, são para chamar a atenção?
NINA – Alguma coisa de errado nisso? Os homens das cavernas pintavam-se com exuberância. Os papas e cardeais usam cores fortes para se diferenciar dos outros e chamar a atenção. Os presidentes das nações usam ternos caros, andam cercados de bandeiras e têm até bandinhas para saudá-los. Não é para mostrar um status diferente, para atrair atenções que fazem isso? Será que só eles podem e eu não?
VEJA – E por que você quer chamar a atenção?
NINA – Eu tenho algo a dar. Quero que me olhem, que ouçam o que eu tenho a dizer, que entrem em contato comigo, tanto pessoalmente quanto por intermédio de minha música e de minha arte.
VEJA – Qual a sua mensagem para as pessoas?
NINA – Entre os cantores de rock, apenas eu falo diariamente com Jesus. Depois conto essas conversas em minhas músicas. Falo sobre discos voadores e habitantes de outros mundos que nos vêm ensinar a viver de mãos dadas e em paz. Cada música minha é diferente, como cada voz, cada dia e cada existência.
Também sei cantar de
modo carinhoso
VEJA – Se a sua mensagem é o resultado de conversas com Deus, por que você não faz música religiosa?
NINA – Minha música é uma ode a Deus. Meu peito é uma caixa de ressonância para a nova igreja do amor. A igreja tradicional desencontrou-se da vida. Queimava feiticeiras antes, benze canhões agora. Acho que precisamos de algo diferente, de mais luz e compreensão. Escolhi o rock como veículo para difundir minha mensagem. Se for preciso dizer isso gritando, no som rápido e agressivo do rock, vou fazê-lo. Mas também sei soprar docemente nos ouvidos das pessoas e cantar de forma suave e carinhosa.
VEJA – O rock é um bom veículo para essa mensagem?
NINA – Ele é irrequieto, clama por atenção, atrai, induz a cantar e dançar, leva as pessoas ao êxtase. É uma sensação deliciosa. Deve ser parecido com o que se sente no sétimo céu.
VEJA – O que os discos voadores têm a ver com tudo isso?
NINA – Eu vi um, da janela do meu quarto, na praia de Malibu, em 1981, quando estava grávida da minha filha Cosma. Vi seus tripulantes, embora não tenha falado com eles, vi os raios de luz de todas as cores que ele emitia. Fiquei maravilhada e paralisada. As cores, fluorescentes, eram muito fortes, moviam-se em volta do disco, cor-de-rosa, turquesa e amarelo. Esse disco voador me deu uma energia nova. Descrevi essa visão numa de minhas músicas[3]. Ela fez um grande sucesso.
VEJA – Já encontrou pessoas que gostaram da música mas duvidaram da visão?
NINA – Muitas. Mas se ouvem a música já é um bom começo. Eu também já duvidei de muitas coisas nas quais passei a acreditar depois.
VEJA – Dê um exemplo.
NINA – Quando menina vivia na Alemanha Oriental e recebi uma educação atéia. Fui membro da Juventude Comunista, como uma boa alemãzinha. Mas à medida que crescia fui mudando e passei a crer piamente em Deus.
VEJA – Você saiu da Alemanha Oriental porque não a deixavam cantar rock lá?
NINA – Pelo contrário. O governo alemão oriental aceitou o rock há muito tempo. Chega até a patrocinar bandas de rock. Há conjuntos de rock ocidentais que vão cantar lá e conjuntos de lá que vão cantar em países capitalistas. Por muito tempo o governo me pagou para cantar em festivais da juventude. Mas é claro que nem sempre foi assim.
VEJA – Quando mudou?
NINA – No tempo de Stálin, os partidos comunistas tinham maior capacidade para impor suas diretrizes ao povo. Naquela época eles podiam dizer: “Não vista blue-jeans nem mini-saias, não use cosméticos, não ouça rock-and-roll”. Às vezes toleravam um pouco, mas depois reprimiam, considerando o ritmo anti-social, alheio às tradições culturais comunistas. Essas resistências foram se diluindo porque o povo gostava de rock. Houve um tempo em que o povo, principalmente os jovens, não ia a festivais se não houvesse alguma banda de rock para animar o ambiente. Os governantes acabaram descobrindo que a única forma de conseguir gente para ouvir seus discursos longos e soporíferos era contratando roqueiros.
VEJA – Por que, então, deixou a Alemanha Oriental?
NINA – Por causa da Polícia da Cultura, uma espécie de fascismo socialista, com pessoas que ganham regiamente para impedir compositores de fazer letras que desviem demais das receitas do regime. Algum dia isso vai passar e esses governos vão sentir vergonha por terem proibido músicas que falavam em liberdade ou contavam a vida de um alcoólatra ou ainda abordavam temas religiosos de uma forma respeitosa. Por enquanto eles só aceitaram o ritmo do rock, mas a letra tem que ser enquadrada em seus padrões. Não faz mal. Todo mundo liga as estações de rádio do Ocidente e ouve as suas músicas.
Há governos parecidos
com meninos arteiros
VEJA – Basta sintonizar as rádios do outro lado?
NINA – Às vezes o governo da Alemanha Oriental interfere nas transmissões do exterior para impedir que a população ouça versões diferentes da verdade que eles oficializaram. Eu também ficava muito irritada quando me impediam de ouvir minhas músicas preferidas, que nada tinham a ver com política.
VEJA – Como se explica esse tipo de ação do governo comunista?
NINA – É um bando de gente chata, insegura, temerosa de que, se a população tiver acesso a noticiário ou mesmo a propaganda vinda de fora, vai perder a capacidade de raciocinar. Trata a população como se fossem todos criancinhas. Mas são os governos comunistas que demonstram, por alguns de seus gestos, que ainda não saíram da infância.
VEJA – Que gestos?
NINA – Basta contar o que fizeram com uma das pessoas que mais respeito na vida, Wolf Biermann, meu padrasto. Ele escrevia músicas muito críticas, que eram rigorosamente censuradas. Num determinado momento proibiram-no de cantar em público. Mesmo assim, todos os anos ele lançava um disco com suas canções na Alemanha Ocidental, sempre com muito sucesso de vendas. Com o que ganhava, ajudava gente do mundo das artes em dificuldades com a polícia. Certa vez, para sua surpresa, ele recebeu autorização para cantar na Alemanha Ocidental. No dia em que atravessou a fronteira, o governo anunciou que o seu passaporte estava cancelado e ele não poderia mais voltar à Alemanha Oriental. Veja só, aquele governo enorme não teve coragem para expulsá-lo do país. Valeu-se de uma cilada para livrar-se dele. Fazem caras sérias, posudas, de gente crescida, e comportam-se como meninos arteiros. Essa foi a gota d’água, para mim.
VEJA – O que fez, então?
NINA – A família de Biermann e seus amigos encaminharam um abaixo-assinado pedindo que o governo autorizasse a volta dele. As pressões sobre os signatários do documento foram tantas que, um a um, todos foram pedindo a retirada de suas assinaturas. No fim ficamos eu e minha mãe. Decidi então ir ao Ministério da Cultura e disse que ou autorizavam a volta de meu padrasto ou me deixavam sair também. Do contrário, eu passaria o resto da minha vida escrevendo e cantando sobre o meu drama. Foi o que bastou para que me dessem um visto num período recorde de quatro dias.
Cresci cercada pelo
muro de Berlim
VEJA – A mudança fez alguma diferença em sua vida?
NINA – Eu havia crescido cercada pelo muro de Berlim. Sempre soube que havia um mundo diferente, e mais livre, do outro lado. Queria conhecer esse mundo e não apenas aquela parte confinada pela muralha. Queria ser cantora, ser famosa, fazer arte, teatro, rock, ópera, tudo. Tinha certeza de que um dia isso iria acontecer e não estava com muita pressa. Enquanto esperava, fiz tudo o que podia para aprender, assistia de reuniões da Juventude Comunista a peças de Bertolt Brecht, que considero magistrais. Brecht é um dos meus grandes gurus. Desde que vim para o Ocidente não parei mais de trabalhar e descobri esse mundo com que eu tanto havia sonhado. É claro que minha música é influenciada pelas experiências novas que fui adquirindo.
VEJA – O seu rock mudou muito no Ocidente?
NINA – Acho que sim, embora eu tenha a impressão de que ele está cada vez mais comportado. No fundo quero me comunicar, fazer com que as pessoas encontrem coisas interessantes em suas vidas. Com o tempo deixei de ser uma cantora e passei a ser uma santa do rock. Acho que meus espetáculos provocam uma reação tão forte na platéia porque não digo mentiras, nem para mim nem para os que me vão ouvir.
VEJA – Foi difícil para uma mulher como você encontrar um lugar no mundo do rock, predominantemente ocupado pelos homens?
NINA – Não acredito que tenha sido mais difícil para mim do que foi para Janis Joplin, para Billie Holliday ou para Ella Fitzgerald entrarem no mundo dos blues e do jazz. Acho que a chave para tudo nesta vida é o trabalho.
VEJA – Você trabalha muito?
NINA – Depois de tomar café com minha filha e levá-la para o jardim da infância eu passo o tempo todo trabalhando. Ensaio horas a fio, sem parar. Sempre há músicas novas para tentar ou um novo projeto – um disco, um vídeo, um filme. Nunca paro de compor e sempre é preciso ajustar as músicas, ensaiá-las, gravá-las. Assim, quando vou fazer um disco novo, já tenho muitas músicas prontas.
VEJA – Você costuma viajar muito?
NINA – No ano passado passei três meses cantando em teatros por toda a Europa e quando chegou o verão comecei a fazer espetáculos ao ar livre. Depois da Europa iniciei outra excursão pelos Estados Unidos. Nesse período a vida é show numa cidade, viagem, show em outra cidade, ensaios, mais viagem. No fim das excursões tenho vontade de ficar na cama por várias semanas, descansando.
VEJA – Quanto tempo você gasta para pintar o rosto ou planejar a sua roupa, antes de um show?
NINA – Essa é uma das partes mais relaxantes de todo o dia. Não levo muito tempo. Às vezes 10 minutos, às vezes 1 hora. Adoro me pintar, mas não planejo nada. Acho que isso nasceu comigo, é parte da minha arte, uma forma natural de me expressar.
VEJA – De que tipo de música você gosta mais?
NINA – De tudo. De ópera a rock e tudo o que está entre esses dois extremos. Atualmente meus favoritos são David Bowie, Iggy Pop, Hanoi Rocks e Mahalia Jackson.
VEJA – E da sua vida, gosta?
NINA – Não pode haver vida melhor. Estou ajudando a mudar o mundo, a torná-lo melhor. Não posso fazer as superpotências abandonarem suas armas atômicas, mas posso dizer o que penso delas em minhas canções. Posso falar no amor e sentir o calor que minhas vibrações causam na audiência. Não é por outra razão que meu último disco se chama In Ecstasy.
VEJA – Ainda há muita droga no rock?
NINA – Acho que há muita droga no mundo. Há alcoólatras e toxicômanos por todos os lados. Alguns estão nos hospitais, outros vão para instituições de saúde mental, muitos morrem nas ruas. Basta abrir os olhos e perceber que há muita droga nas empresas, nas escolas, nos bancos. Quantas pessoas exigem que servem chefes exigentes, que precisam responder a expectativas acima de suas possibilidades, que trabalham mais do que devem? É para se libertar dessa carga excessiva que se refugiam nas drogas ou no álcool. Ligar as drogas apenas ao mundo das artes é um erro. E não esqueçamos também os tranqüilizantes, as pílulas para dormir, que criam uma dependência grande quanto as drogas ou o álcool.
Quem cuida do dinheiro
é minha empresária
VEJA – Você bebe?
NINA – Só champanhe, nas grandes comemorações, e às vezes passo da conta. Mas é errando que se aprende, não é?
VEJA – Por que você passou a cantar em inglês?
NINA – Porque grande parte da minha audiência fala inglês. Mas meus discos sempre têm uma versão inglesa e outra alemã. Na França sempre procuro cantar em francês e de vez em quando ataco até em russo. Em todos os países a que vou eu quero ser compreendida. Não se surpreenda se eu sair do Brasil cantando um rock em português.
VEJA – Como você recebeu o convite para cantar no Brasil?
NINA – Amei! Quero cantar para o maior número possível e pessoas, quero alcançar todo mundo, quero ser conhecida, amada e desejada pelo mundo inteiro. Quero que minhas músicas sejam parte da vida dos brasileiros.
VEJA – Mas você certamente ganharia mais dinheiro cantando em outros países, não?
NINA – O dinheiro não importa, dele cuida minha empresária. Estou mais interessada em arte, música, amor. Canto de graça nas prisões, nos parques para os jovens de Berlim e Copenhague. Há lugares onde canto de graça com meus amigos e sou muito bem tratada, com muito champanhe.
FONTE: Acervo Veja
[1] Nina Hagen se apresentou no dia 13 de janeiro de 1985, no primeiro Rock in Rio, ainda na Cidade do Rock, para 110 mil pessoas. Naquela noite se apresentaram, pela ordem: Os Paralamas do Sucesso, Lulu Santos, Blitz, The Go-Go´s, Nina Hagen e Rod Stewart. Nina Hagen também se apresentou no dia 20 de janeiro de 1985, para 200 mil pessoas. Pela ordem, se apresentaram naquela noite: Barão Vermelho, Gilberto Gil, Blitz, Nina Hagen, The B-52’s e Yes.
[2] Quer saber quanto valeria hoje? Depende do índice adotado. Tenta aqui: http://calculoexato.com.br/menu.aspx
[3] Flying Saucers. Ouça aqui: https://www.youtube.com/watch?v=YSFv_vrcQU8
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