Reminiscências de viagens e permanências. (Daniel Kidder)
Viagem do missionário Daniel Kidder pelo Brasil.
45. Paraíba
[ João Pessoa ] - PB
08/1839
Trecho da Obra:
Todas as povoações litorâneas ostentam coqueirais frondosos. Essas utilíssimas palmeiras não proliferam espontâneamente. Têm de ser, plantadas e regadas cuidadosamente durante muito tempo. Por isso, quando se avista ao longe um grupo de coqueiros, já se sabe de antemão que por perto existem moradores. [128] Era interessante verem-se esses tufos oscilantes, plantados na areia, a certa distância uns dos outros. A vila a que acima nos referimos teria, quando muito, duzentos habitantes. Muitas das casas eram de tijolos e telhas; a capela tinha um aspecto imponente. Ao largo, defronte à povoação, diversos jangadeiros pescavam. Passamos tão junto do povoado que distinguimos tudo quanto estava na praia. Toda a extensão da costa que avistamos durante o dia parecia dividida a intervalos regulares, em trechos de praia arenosa, elevando-se gradativamente em direção ao interior e barrancos perpendiculares de terra vermelha, coroados de vegetação rasteira até a borda. A altura dessas escarpas, acima de linha d'água, oscilava entre 6 e 18 metros e a terra desnuda, talhada à prumo, exibia lindas camadas regulares de strata coloridas. Nessas latitudes travaram-se várias batalhas navais, no passado.[129]
Achava, o nosso informante, que o motivo de não ter a leitura da Bíblia produzido acentuado efeito favorável residia no fato de terem os catequistas substituído os mandamentos por oráculos vivos. Soubemos que naquela ocasião é que se realizavam as maiores festividades religiosas do ano, na Paraíba, pois no dia 5 de Agosto celebrava-se a festa de Nossa Senhora das Neves, padroeira da cidade. Perguntamos que santa era essa e apenas souberam nos dizer que essa Nossa Senhora é a mesma Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora do Rosário e diversos outros nomes que dão à Virgem Maria! Duvidamos que a mitologia grega ou romana tivesse sido mais confusa. Essas festas, como todas as outras de grande importância, foram precedidas de uma novena, isto é, nove "rezas" realizadas em noites sucessivas. Em cada uma dessas noites havia um divertimento diferente, do qual se encarregava um cidadão que, naturalmente, procurava sempre exceder o outro na pompa e no brilho da festa a seu cargo. Convidaram-nos para sairmos à noite a fim de ver aquilo que achavam não poder deixar de nos ser profundamente interessante. A matriz, onde se celebrava a festa, ficava mesmo nas vizinhanças. Postamo-nos em urna das extremidades de um pátio oblongo. [132] A frente da igreja estava iluminada por velas em lanternas quebradas, dispostas em torno da porta e à frente de uma imagem colocada em um nicho preso à cúpula. Grandes fogueiras ardiam em vários pontos do pátio. Em torno delas acotovelavam-se negros ansiosos por queimar baterias de foguetes a certos trechos dos atos litúrgicos que se realizavam na igreja. Terminada a novela, todo o povo acorria ao campo, para apreciar os fogos de artifício que se queimavam desde às nove horas até depois de meia-noite. Os que tivemos ocasião de ver eram muito mal feitos. Não obstante, o povo se pasmava e aplaudia freneticamente. Se se tratasse de divertimento para africanos ignorantes, seriam mais compreensíveis essas funções, mas, como parte de festejos religiosos (em honra a Nossa Senhora Padroeira), celebrados em dia santificado e com a presença entusiástica de padres, monges e do povo, temos que confessar francamente que nos chocou bastante e teria sido melhor que não os tivéssemos presenciado.
Uma das mais penosas impressões que colhemos foi ver famílias inteiras, inclusive senhoras e senhoritas, ao ar úmido da noite, admirando cenas que não só tocavam às raias do ridículo; mas, ainda, eram acentuadamente imorais - e dizer-se que tudo isso se fazia em nome da religião! Retiramo-nos prazerosamente logo que nossos companheiros se dispuseram a sair, com a firme resolução de jamais assistir voluntariamente, a tais profanações do dia do Senhor.
No dia seguinte tivemos o prazer de um passeio a cavalo em companhia do Sr. R. Atravessamos as ruas principais da cidade alta onde estão os conventos, a cadeia, a Misericórdia, o Tesouro, o Palácio do Governo e diversas igrejas. Daí nos dirigimos à estrada que vai a Pernambuco, tendo-a percorrido por cerca de cinco milhas, até um grande cruzeiro chamado Cruz das Almas. Aí voltamos à direita e descemos para as baixadas ribeirinhas, por onde regressamos à cidade baixa. O rio é por demais sinuoso e a navegação não vai além do atual ancoradouro. As canoas, porém, sobem-no até grande distância, mas, no verão, seu leito fica completamente seco por mais de vinte léguas. Seu curso orienta-se para noroeste e a cidade ergue-se sobre a margem meridional. Uma das melhores construções do lugar era o novo trapiche ou armazém do Governo. Em sua frente três navios ingleses carregavam algodão e pau brasil. Eram os únicos barcos ancoradas no porto. [133]
Partindo da barranca do rio subiam duas ruas onde se encontravam os melhores prédios e os principais estabelecimentos comerciais da cidade baixa. Essa parte da Paraíba revelava algum progresso. Havia diversos edifícios em construção, os aluguéis eram elevados e o preço das propriedades estava em franca ascensão. Entretanto, o número de habitantes era aí menor que na cidade alta. A elevação desta última deve ser de aproximadamente 60 metros e o declive que a separa da parte baixa é bastante acentuado, abrupto mesmo. O Arsenal do Exército, que ocupa um dos pontos mais lindos do lugar, está instalado num grande prédio amarelo, no meio de uma área plana, nentre as duas cidades e com frente para a rua principal que as liga. Os edifícios da cidade alta, a que acima nos referimos, não diferem muito do estilo comum às construções brasileiras, a não ser o prédio do Tesouro que apresenta uma escadaria excessivamente ornamentada. A cadeia ostenta uma data indicando ter mais de cem anos de construção. As ruas são largas e pavimentadas com pedra argilosa e as lages já se mostravam muito gastas, quando lá estivemos. Vêem-se, ainda, na Paraíba, velhas "jelousias" apoiadas sobre cornijas de pedra lavrada e o aspecto da cidade é de antiguidade. [134]
Uma tarde, depois do jantar, saímos a passeio em companhia de um jovem estudante do Convento Franciscano, cujo prédio é o mais custoso e interessante do lugar. Em sua frente estendia-se um pátio ladrilhado e cercado de altos muros, sobre a qual - da mesma maneira que tanto na parte externa, como na interna de edifícios semelhantes - viam-se painéis em porcelana ou azulejos de barro vidrado. No fundo desse adro erguia-se enorme cruzeiro de pedra sobre um bem proporcionado pedestal do mesmo material. Por dentro o prédio era espaçoso e bem construído. Consistia ele em uma grande capela e ordens de celas aos lados de um claustro quadrado, com largas varandas tanto no pavimento inferior como no superior e demais dependências comuns a estabelecimentos dessa natureza. Das paredes pendiam numerosos quadros, quase todos grosseiros e caindo aos pedaços, de tão mal conservados. Alguns tinham uma pequena descrição do que representavam - explicação tão necessária quão rara.
No geral, as figuras que decoram esses mosteiros, desde o teto abobadado das capelas, descendo pelas paredes, são mais incompreensíveis que hieroglifos. Percebem-se entre elas monges encarapuçados, bispos, com suas mitras, aparições de anjos, etc.. Entretanto, quando se pede explicação, dizem-nos apenas que o quadro representa algum milagre do santo e seus devotos. Notamos que mesmo aqui, onde os franciscanos não tiveram a companhia de seus "caros irmãos" dominicanos, estes não os esqueceram. Em um grande painel via-se um dominicano confundido por um franciscano que, defendendo o dogma da virgindade perpétua de Maria, fincara seu bastão em terra e imediatamente dele brotaram três flores em miraculoso testemunho de sua doutrina! [135]
À medida que caminhávamos por entre as paredes solitárias, refletíamos sobre as somas colossais empregadas na construção de conventos em todas as cidades deste país inexplorado e retrógado. Jamais tendo atingido a finalidade pia a que foram destinados, são os mosteiros como que monumentos de mal compreendido zelo. O Governo demonstrou critério utilizando esses edifícios para fins utilitários, sempre que possível, e, se ao fim de mais um século não passarem eles de montões de ruínas, a culpa caberá inteiramente ao Estado.
Seguindo o exemplo de outras, esta Província concedeu a cada convento a permissão de admitir nove noviços. Entretanto, até agora, - soubemos com satisfação - não houve candidatos. "Ninguém quer ser frade", é a frase corrente. A despeito de ser uma vida cômoda e opulenta, tal é a aversão que a ela votam o governo e o público, que ninguém quer se aproveitar dessas vantagens inglórias.
O mosteiro de São Bento, o maior e o mais velho de todos, só tem um ocupante: o abade. Esta ordem, tanto aqui como em outras lugares onde se estabeleceu, possui engenhos, escravos e grandes extensões de terra. O Convento do Carmo estaria deserto se não fosse a tropa nele aquartelada.[136]
As terras da Paraíba são, em muitos respeitos, semelhantes às de São Paulo. O mesmo se pode dizer da situação da cidade, à margem do rio. Encontramos, porém, aí, diversas espécies de pedra que ainda não tínhamos visto no resto do país. Além da rocha argilosa a que nos referimos atrás, usada na pavimentação de ruas, há outra, calcárea, de cor esverdeada. É dura e aplica-se em construções, da mesma forma que no Rio de Janeiro se usa o granito. Reduzida a pequenas partículas, é depois preparada em forma de argamassa; assim forma uma parede assaz durável. Algodão e açúcar são os principais artigos de exportação da Província. Os canaviais não são plantados muito no interior, para, evitar despesas de transporte. Todo o açúcar produzido entre quinze e vinte léguas da costa é consumido em forma de rapadura, nome que, dão ao produto ainda não alvejado. Em geral é vazado em forma de pequenos bolos que lembram os de "maple sugar" vendidos corno raridade em certas cidades do interior dos Estados Unidos. São muito apreciados nos sertões onde os levam à boca quando tomam água salobra, a fim de neutralizá-Ia. Foi com pesar que soubemos estar em franco aumento, tanto a produção como o consumo de cachaça. Essa bebida, encontra-se na maior parte das casas suburbanas bem como nas estradas por onde viajamos. Tivemos ocasião de ver muitos sertanejos e mulatos completamente embriagados. Em tal estado é indesejável a companhia dessa gente que jamais se separa de sua faca de ponta.
Uma cousa interessante que notamos nessas plagas foi o enorme consumo de pimenta às refeições. [137] A tal ponto que, mesmo para o Brasil, se pode considerar exagerado. Além de ser cada prato fortemente apimentado, considera-se essencial, na mesa, uma infusão desse frutinho, com "fogo" suficiente para consumir qualquer paladar desabituado.
Usa-se muito a farinha de mandioca. preparada com gordura, pimenta e vinagre, ao que chamam farofa.
Encontra-se, na Paraíba, muita gente descendente de índio, conquanto seja difícil distingui-la dos portugueses, ou dos negros pois a amálgama dessas duas raças deu-se no mais elevado grau.
Nas vizinhanças da Paraíba se encontram cobras enormes, chamadas "cobras de veado" porque são capazes de engolir um corpo inteiro e, às vezes, até mesmo uma rês. As serpentes venenosas são igualmente comuns. Consta que uma dessas tem duas cabeças e é cega. A vítima de sua mordedura perde a vista e morre logo depois. [138]
KIDDER, Daniel. Reminiscências de viagens e permanências … Editora Itatiaia limitada; Editora da Universidade de São Paulo, 1980, 128-129; 132-138. Obra(s) relacionada(s): https://digital.bbm.usp.br/browse?type=author&value=Kidder%2C+Daniel+P.%2C+1815-1891
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