Deixem de conspurcar a palavra 'genocídio'

 


A guerra em Gaza é uma tragédia, como são todas as guerras, mas não é um genocídio. Invocar esse crime máximo não é apenas errado, é uma forma canalha de explorar milenares preconceitos anti-semitas. José Manuel Fernandes para o Observador:


Portugal resolveu alinhar pelo mais fácil e ilusoriamente mais popular: este domingo, formalizou o reconhecimento de um Estado que não existe, não tem fronteiras definidas, não tem autoridade que controle todo o território e muito menos tem legitimidade democrática ou cumpre as condições que o Governo português hipocritamente definiu a 31 de Julho. Não me apetece porém debater estas contradições, nem sequer discutir aquilo que me dizem – estas coisas nunca são assumidas publicamente – que mais do que convicções, aquilo que move o nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros é a ambição de Portugal voltar a conseguir uma temporada como membro do Conselho de Segurança, oportunidade de boas prebendas para alguns dos seus quadros. Adiante, que nisto do reconhecimento da Palestina Portugal valerá tanto como Andorra ou São Marino, dois dos países com que entendeu alinhar-se.

O que me interessa hoje por hoje é o tema do alegado “genocídio” que dizem estar a acontecer em Gaza. É certo que a nossa diplomacia e os nossos responsáveis (MNE, PM, PR) ainda não deram o passo fatal, ainda não formularam essa acusação, mas não é possível ligar uma televisão sem ver uma alimária a perorar sobre o tema – desculpem a frontalidade e os termos, mas há alturas em que o que é demais… é demais. Por isso, em vez de discutir as condições que o Governo de Portugal colocou para o reconhecimento do Estado da Palestina e não cumpriu, vou ao que inquieta essas mentes exaltadas que por aí anunciam a sua piedosa revolta.

tema não é para menos: se há crime contra a Humanidade que nos deva perturbar é o crime de genocídio. Não se trata apenas de massacrar civis, nem de bombardear cidades, nem de se acumularem os mortos no terreno de combate, trata-se de algo qualitativamente diferente – implica um “acto realizado com intenção de destruir, total ou parcialmente, um grupo humano identificado por nacionalidade, etnia, raça ou religião”. Esta é a definição das convenções internacionais – a convenção sobre o genocídio de 1948 e o Tratado de Roma relativo ao Tribunal Penal Internacional – e nesta formulação a palavra chave é “intenção”, aquilo que os juristas definem como “dolus specialis”.

A existência de intencionalidade é central pois quaisquer dos actos depois definidos como podendo materializar o crime de genocídio – o homicídio ou ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo, a sua submissão deliberada a condições de vida capazes de provocar sua destruição, a imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos ou a transferência forçada de crianças – não o definem só por si. A Rússia, por exemplo, procedeu à transferência forçada de crianças na Ucrânia, isso foi considerado um crime de guerra mas não um crime de genocídio.

Não sou jurista, nem pretendo ser, faço mesmo parte dos que entendem que não são os juristas que governam o mundo e sim os responsáveis políticos, pelo que não vou entrar nas discussões retorcidas que ocupam certas mentes perturbadas. Acho mais importante distinguir a tragédia de uma guerra – e a guerra em Gaza é uma tragédia, sobre isso não tenho qualquer dúvida ou reserva – do discurso apocalíptico, e profundamente político, que confunde tudo.

Na história recente da Humanidade houve poucos genocídios, mas quando recordamos o genocídio arménio, o Holocausto nazi ou o massacre dos tutsis percebemos facilmente que estamos a falar de algo muito diferente daquilo que se está a passar em Gaza.

Vamos porém por partes, pois o tema exige uma análise detalhada, a começar por algo que nunca ou quase nunca é considerado: as leis da guerra. Não é um detalhe e muito menos um adquirido, pois aquilo que temos vindo a convencionar como regras nos conflitos internacionais pressupõem que os contendores combatem usando métodos equivalentes, isto é, que há um exército que enfrenta outro exército. Não é um detalhe, pois quando assim é os combatentes estão por regra bem identificados, usam fardas, não se misturam nem escondem entre as populações civis.

O que se passa na guerra de Gaza é algo de totalmente diferente, é muito mais próximo daquilo a que se convencionou chamar “guerra assimétrica”, só que aqui não há guerrilheiros que se escondam em montanhas ou selvas, há terroristas que usam a população civil como escudo humano e não hesitam em esconder-se em, e em agir a partir de, instalações protegidas pelas leis da guerra, como são hospitais ou escolas.

Para além disso a guerra em Gaza – agora na cidade de Gaza propriamente dita, antes em Rafah e em Khan Yunis – é aquilo que os especialistas definem como uma guerra urbana, muitas vezes travada rua a rua, casa a casa, aqui também túnel a túnel. Esta guerra não se trava em trincheiras como a da Ucrânia, que lembram as da I Guerra Mundial, nem nos campos abertos onde batalhões de carros de combate enfrentam batalhões de carros de combate, como sucedeu por exemplo nas guerras dos Seis Dias ou do Yom Kippur, só para citar as que se travaram na mesma região.

As consequências para os civis de guerras urbanas são sempre muito mais pesadas e isso mesmo se reconhece em relatórios das Nações Unidas, o mais recente dos quais é de 2022 e nele refere-se que nos conflitos em áreas urbanas 90% das vítimas são civis, ao contrário do que sucede em áreas abertas, onde só 10% dos afectados são civis. Ou seja, a relação entre combatentes e não combatentes é de um para nove quando a guerra se trava numa cidade.

Sendo a Faixa de Gaza uma das regiões mais densamente povoadas do mundo, que rácio deveríamos então esperar de uma guerra aí travada? (E recordemos que é aí que está a ser travada porque é aí que se esconde a autoridade que governa Gaza desde 2007, o Hamas, e foi para aí que esse grupo terrorista levou os reféns que sequestrou no 7 de Outubro.) Em princípio um rácio que não ultrapassasse o diagnosticado pelas Nações Unidas, pois se isso acontecesse seria porventura um sinal de que a guerra estava a ser dirigida contra os civis.

Aqui chegados defrontamo-nos com um problema: ao contrário do que sucede nos conflitos convencionais, os terroristas do Hamas não combatem fardados e não é possível identificar com clareza civis e não civis. Pior: desde o início do conflito que os números fornecidos diariamente pelo “ministério da saúde de Gaza” — na prática o Hamas — não distinguem entre vítimas militares e civis, procurando antes criar a percepção de que serão todos ou quase todos civis, não separando também as mortes naturais das mortes resultantes da guerra. Pior ainda: nesses números tenta-se sempre criar a percepção de que a esmagadora maioria das vítimas são mulheres e crianças (sendo que nesta contabilidade são consideradas crianças todos os que têm menos de 18 anos…).

Mesmo assim houve quem tivesse analisado todos esses números com cuidado, sendo que o melhor paper que encontrei foi um realizada para o Washington Institute for Near East Policy que analisa, um a um, todos os comunicados do famoso “ministério da saúde de Gaza” e a informação neles existente sobre a identidade das vítimas. É um trabalho cuidadoso, até porque os números foram sendo corrigidos pelos próprios ao longo do tempo, e é um trabalho que permite reconstituir a pirâmide etária das vitimas, o que importante e revelador. Se estivéssemos perante uma guerra de extermínio, dirigida especialmente contra os civis, a tal guerra genocida, encontraríamos proporcionalmente mais mulheres e crianças entre as vítimas, mas é exactamente o contrário que se regista. Olhem, por exemplo, para este gráfico:


O que se percebe olhando para a imagem é que, proporcionalmente, têm morrido menos mulheres e menos crianças do que se esperaria se a guerra matasse todos por igual, e que a maioria das vítimas são homens, sobretudo homens em idade de combater. O estudo aliás especifica que entre os 20 e os 40 anos em cada quatro vítimas mortais, três são homens.

Destes dados é possível extrair uma primeira conclusão – não há uma acção deliberada de extermínio, como pressupõe o crime de genocídio. Destes dados não é contudo possível extrair qual a relação exacta entre mortes civis e mortes de combatentes (designá-los como terroristas seria mais exacto), mas mesmo assim podemos fazer algumas contas, desta vez usando os mesmos números do “ministério da saúde de Gaza” e também as estimativas quer do exército israelita, quer dos Estados Unidos.

Considerando válido o total de cerca de 65 mil mortes, e mesmo sem saber quantas terão sido naturais (numa população de dois milhões de habitantes esperar-se-iam cerca de 20 mil mortes por ano), temos duas estimativas para o número de combatentes mortos: a do IDF aponta para 25 mil, a dos Estados Unidos para 15 mil. Se tomarmos esta última, temos um rácio de mortes civis por combatente um pouco superior a três, longe, muito longe mesmo dos nove para um dos relatórios das Nações Unidas referentes a outros conflitos.

Considerando esta realidade, a pergunta a fazer não é se há genocídio, mas antes como é que Israel consegue rácios tão baixos num ambiente de guerra tão complexo com a Faixa de Gaza. A explicação está em Israel avisar por regra as populações civis antes de um ataque, pedindo-lhes para saírem da área, exactamente o que está a fazer agora na cidade de Gaza perante a mais hipócrita das reacções internacionais, que apresentam o êxodo temporário da população como sendo um crime quando é uma medida de salvaguarda de vidas civis numa zona de guerra.

Não vou discutir a racionalidade da ofensiva que decorre em Gaza, não tenho informação suficiente e não conheço os argumentos dos que, nas Forças Armadas de Israel, se opuseram a ela, mas aquilo que vejo não é qualitativamente diferente do que os Estados Unidos fizeram em Mossul quando avançaram para desalojar os terroristas do ISIS, que tinham tomado aquela cidade iraquiana, apenas com duas diferenças: o ISIS não dispunha da rede de túneis do Hamas e o exército americano não foi tão eficaz no seu esforço para evitar baixas civis. Mesmo assim ninguém falou de “genocídio”…

A outra linha de argumentação repetida sem procurar averiguar da sua real dimensão é a alegação de que Israel estará a matar os palestinianos à fome. Recentemente houve mesmo um conjunto de fotografias que fez capa em jornais de todo o mundo e que revelariam o gravíssimo estado de desnutrição das crianças em Gaza, e tudo por Israel alegadamente bloquear a entrada de ajuda humanitária.

A verdade é um bocado mais complicada, mesmo assumindo-se, como eu assumo e será difícil negar, que há fome em Gaza, mas não nas dimensões descritas nem sendo fruto de uma acção deliberada do governo judeu.

Não me vou alongar sobre as fotografias, pois é uma história triste de manipulação da opinião pública usando crianças com problemas de saúde que nada tinham ou têm a ver com malnutrição. Este artigo explica caso a caso o que se passava com as crianças que fizeram capas de tantos jornais (e este desenvolve melhor o caso mais conhecido, o de Mohammed Zakaria al-Mutawaq), sendo que as correcções foram depois ou ignoradas, ou “enterradas” em páginas interiores para que ninguém desse por elas.

Já quanto ao bloqueio da ajuda alimentar, infelizmente as agências das Nações Unidas têm criado mais problemas do que soluções, e também elas andaram a usar números falsos que levaram meses e meses a corrigir. Mais: responsáveis houve que fizeram previsões apocalípticas sobre o número de crianças que iria morrer de fome, previsões que nunca se materializam mas que foram amplamente reproduzidas (nesta a BBC – sim, a BBC – anunciava em Maio, citando o diretor de ajuda humanitária das Nações Unidas, Tom Fletcher, que 14 mil bebés poderiam morrer de malnutrição nas 48 horas seguintes, o que naturalmente não aconteceu nessas 48 horas, nem sequer no conjunto destes dois anos de guerra).

Verificando de novo os dados disponíveis e verificáveis, eis alguns elementos importantes:
*os números relativos à mortalidade infantil reportados pelo “ministério da saúde de Gaza” são (dados até Junho de 2025) idênticos aos registados no vizinho Egipto, onde não há nenhuma guerra;

*fazendo as contas ao número de camiões com alimentação que entraram em Gaza nestes quase dois anos, e considerando uma população de dois milhões de habitantes e descontando a comida que chegou por outros meios e a produzida localmente, chegamos a cerca de 500 a 600 quilos de comida por ano e por pessoa, menos do que é habitual em países desenvolvidos, mas dentro do habitual em países menos desenvolvidos;

*85% dos camiões que entram em Gaza com ajuda humanitária são imediatamente assaltados ou desviados pelo Hamas, de acordo com estimativas da própria ONU, reaparecendo depois o seu conteúdo no mercado negro;

*o único esforço feito por uma agência independente, financiada pelos Estados Unidos e por Israel, para distribuir directamente alimentos à população não correu bem por razões ainda não totalmente explicadas, mas em boa parte devido aos ataques do Hamas que depende do controle das redes de distribuição de alimentos em Gaza para se financiar.
(Para quem estiver interessado, há muito mais informação sobre os verdadeiros números da ajuda humanitária que entrou em Gaza desde o 7 de Outubro neste longo relatório do Begin-Sadat Center for Strategic Studies.)

Ao mesmo tempo que a desinformação, ou mesmo a manipulação descarada, vai gerando indignações por esse mundo fora, ainda esta sexta-feira homens armados assaltaram um armazém da UNICEF em Gaza e roubaram quatro camiões com alimentação terapêutica que se destinava a 2.700 crianças, um roubo que não mereceu qualquer onda de indignação – e certamente não terá incomodado ninguém da flotilha “humanitária” que continua lentamente a avançar no Mediterrâneo. Um dia depois, uma equipa das Nações Unidas que estaria a abrir um corredor humanitário no sul da Gaza foi atacada pelo Hamas, que tratou de bloquear essa via uma vez que é do interesse dos terroristas manter as populações civis nas zonas onde decorrem operações militares, não para as salvarem mas para as utilizarem como escudos humanos. Nada disto fez porém pestanejar os que, em Nova Iorque, celebravam o reconhecimento do imaginário Estado da Palestina.

Dir-me-ão mesmo assim que não podemos ignorar o relatório publicado a semana passada e que acusa Israel de genocídio. É verdade, não podemos ignorá-lo pois temos de o denunciar como uma grosseira mistificação. Apresentado na comunicação social como sendo uma “relatório das Nações Unidas” é tudo menos isso: é um relatório pedido em 2021 (antes portanto do 7 de Outubro) por um organismo que deveria envergonhar a comunidade internacional, o denominado Conselho dos Direitos Humanos da ONU, organismo que é dominado por ditaduras, e a decisão de o encomendar teve o voto contra de boa parte dos países europeus aí representados, e votos a favor dessas referência democráticas que são a China, a Rússia, Cuba, Venezuela, a Eritreia, o Sudão ou a Somália.

Encomendado a três juristas conhecidos pelas suas posições anti-Israel desgraça-se logo nas primeiras linhas, quando inicia assim o seu sumário dos acontecimentos: “On 7 October 2023, Israel launched its military offensive in Gaza, which included airstrikes and ground operations”. Ou seja, o dia em que Israel foi atacado é o dia em que Israel atacou, o dia em que as forças armadas de Israel corriam para acudir às comunidades onde estavam a acontecer todo o tipo de atrocidades é o dia em que começou a sua ofensiva. O relatório é um insulto à inteligência, uma lamentável diatribe em que o trio de juristas parte de uma conclusão pré-estabelecida e depois torce a realidade de forma a concretizar as suas acusações. É também mais uma triste demonstração de como as Nações Unidas estão a cavar a sua própria sepultura já que não são apenas inúteis, neste caso estão a agir objectivamente como um instrumento do terrorismo.

Volto portanto ao ponto por onde comecei. O que está a acontecer em Gaza é uma tragédia? Sim, é uma tragédia. Há fome em Gaza? Sim, há fome em Gaza. Mas nem uma coisa nem outra configuram o crime de genocídio, o tal que implica o “dolus specialis” de querer exterminar um povo, antes são consequência de uma guerra em que uma parte detém reféns civis e se esconde atrás da sua própria população, e o outro lado exige a libertação incondicional desses reféns e o desarmamento dos terroristas.

A melhor forma de o fazer é como Israel o está fazer? Isso podemos discutir, e eu próprio tenho as minhas questões, mas infelizmente ainda não vi ninguém propor mais do que sucessivos cessar-fogo que não levam a lado nenhum. Até porque é fácil e atraente falar do princípio dos dois Estados – a solução que sempre defendi –, mas muito mais difícil dizer como é que o “Estado da Palestina” garante que não continuará a ser uma base para cíclicos ataques a Israel, como infelizmente nunca deixou de ser mesmo depois dos acordos de Oslo. Disso não vejo os nossos piedosos estadistas falarem para além de dizerem que Mahmoud Abbas prometeu que “agora é que vai ser, agora é que vai haver eleições, agora é que vai proibir o Hamas”. Macron, Starmer e o nosso governo dizem acreditar nesta promessa, eu não a compro.


Comentários

Postagens mais visitadas