ARGENTINA (O LIXO)
O LIXO
Da obra de Martín Caparrós (A FOME)
O sol ataca. Há um caminho de terra, um descampado, cheiro de
raios; há uma ponte. Sob a ponte, o rio Reconquista é uma massa disforme de
água marrom e espuma, podridão. O sol se desfaz. Sobre a ponte, centenas de pessoas
esperam que, 100 metros mais além, uma barreira de abra. Transpiram, se olham,
falam pouco: muitas têm bicicletas. Sob a ponte se ouvem gritos: dois garotos
de 15, 16 anos, correm atrás de outro garoto de 15, 16. Em cima da ponte,
quando a barreira for aberta, centenas de pessoas vão correr para a grande
montanha de lixo. São homens, quase todos; quase todos são jovens — mas há
mulheres, velhos. Sob a ponte, o perseguido grita; os perseguidores o alcançam,
o acossam, o perseguido grita mais. Sobre a ponte, alguns olham: fingem que não
olham e olham. Embaixo, os perseguidores viram o perseguido, agarram-no pelos
braços e os pés, balançam no ar, atiram no rio. O perseguido cai no rio podre,
não grita mais. Os que esperam, esperam. O sol explode.
— É horrível ter de andar no lixo. Meu marido me dizia que a
vida é assim. E eu lhe dizia que, se é assim, a vida é horrível. Meu marido foi
embora, vá saber por onde andar, foi embora e me deixou com cinco crianças. E
eu continuo aqui, no lixo.
Os lixões de José León Suárez são uma tradição argentina.
Aqui, há mais de 50 anos, um governo militar fuzilou um número confuso de civis
que tentavam apagar uma rebelião militar peronista. Daqui — daquela história — saiu
um relato que começava dizendo que UM MORTO estava vivo.
“Seis meses depois, em uma noite asfixiante de verão, diante
de um copo de cerveja, um homem me diz:
“Um fuzilado ainda vive.
‘Não sei o que é que consegue me atrair nessa história
difícil; distante, cheia de impossibilidades’ — escreveu, em 1957, Rodolfo
Walsh no começo de Operação Massacre — e dessas linhas saiu, pouco mais ou
menos, aquilo que fazemos. Daqui, dos lixões de José León Suárez.
— Encontro Paty,[*]
massa de tomate, sopa, essas coisas. Sim, eu cozinho quase tudo de lá de cima.
— E o que cozinha mais?
— Guisado. Guisado com batata, macarrão, arroz. Quando
encontro carne, carne. Depende do que encontrar na montanha.
Os lixões mudaram muito desde então. Agora são um empreendimento de 300 hectares que se chama Ceamse — Coordenação Ecológica Área Metropolitana Sociedade do Estado. Sua origem é turva de tão clara: em 1977, os militares que assassinavam com denodo, que enchiam o rio de cadáveres, decidiram que tinham de acabar com o smog que enfeava o ar da cidade de Buenos Aires. Era uma causa nobre, bem ecológica: proibiram os queimadores de lixo domiciliares e os substituíram por grandes depósitos localizados nos subúrbios; em seu sistema de metáforas, a claridade do céu do centro bem valia o lixo das terras da periferia.
Nesses mesmos dias, a menos de 1 quilômetro dali, no Campo de
Mayo, um dos maiores quartéis do Exército argentino, centenas ou milhares de corpos
desapareceram, foram queimados, enterrados.
A cidade de Buenos Aires produz o lixo; os territórios
circundantes o recebem, o processam — o consomem. A cidade de Buenos Aires,
onde vivem 3 milhões de pessoas, produz todo dia 6,5 mil toneladas de lixo:
trinta distritos periféricos, onde vivem 10 milhões, produzem 10 mil toneladas
por dia. Ou seja: cada habitante da capital produz o dobro de um dos subúrbios.
Pertencer tem seus privilégios.
Sempre existiram pessoas que cirujeaban:[†]
que procuravam nos lixões coisas para vender. Com a instalação do Ceamse — com
o aumento exponencial da quantidade de lixo que chegava à região — os catadores
locais também foram aumentando. No final dos anos 1990, quando a Argentina se
consolidou como um país partido, o Estado armou um cerco ao redor do lixão: passou
a ser vigiado por dúzias de policiais. E não tinham pruridos: quando cruzavam
com um catador, enchiam de porrada — e lhe tomavam, para seu benefício, o que
havia recolhido. As autoridades do Ceamse diziam que faziam aquilo para o bem
dos invasores: que não podiam permitir que levassem — e comessem — alimentos
decompostos que poderiam prejudicá-los. O Estado que não lhes garantia a comida
garantia que não pudessem comer um iogurte azedo. Os catadores começaram a
aperfeiçoar suas técnicas: entravam à noite, sub-repticiamente, um por vez, ou
dois ou três: quando viam algum policial se escondiam, muitas vezes sob o lixo.
Mesmo assim, catar lixo era um trabalho viável em um país com
escassez de empregos. Ao redor do lixão havia um cinturão de terras vazias,
inabitáveis por razões sanitárias. Aos poucos, foram ocupadas.
— Nesse dia, às 15h ou 16h, fiquei sabendo que estavam
ocupando e às 18h estava lá, com meu pedaço de toldo. Foi difícil, muito
difícil. É como em todos os bairros: um se enfia, dois se enfiam e, quando você
se dá conta, todos já estão lá — diz Lorena.
— E então comecei a me dar conta do que é ser pobre.
Corria o ano de 1998 e a Argentina estava, como de hábito, em
plena crise econômica, social. As terras ao redor do lixão ficaram repletas de
pessoas que haviam perdido o emprego, que não conseguiam pagar mais os alugueis
mínimos que lhes cobravam por uma casinha onde podiam sobreviver. E, além
disso, haviam chegado milhares de refugiados das inundações das províncias do
nordeste: a região transbordava de pobreza.
— A ocupação foi
muito espontânea. Quando você ocupa uma terra, é assim, um grande caos, tudo
cheio de pedaços de cabos para marcar os lotes, e eu estava sentada em uma
pedra vigiando um pedaço de terra. Havia um vizinho que se chamava Coqui, e ele
sempre implicava comigo: "Você se lembra daqueles anos, quando era bem
branquinha?".
Lorena era muito
jovem. Não tinha 25 anos. Agora tem 38 e pesa, diz, quase 200 quilos: uma massa
com rosto risonho, inteligente, os cabelos louros meio curtos, carne
transbordante.
— Agora sou
colorida, a pele fica curtida, queimada, os bracinhos pretos...
— Você se lembra de
quando era muito pálida, Lore, e ficava sentada aí, nessa pedra?
— Do que me recordo
é de que tinha um medo...
Lorena havia chegado
do Uruguai oito anos antes, quando tinha 16. Vinha de um bairro operário de
Montevidéu: seu pai fora embora quando era bem pequena; sua mãe, costureira,
trabalhou muito para sustentar suas quatro filhas que, aos poucos, foram
emigrando para a Argentina. Seu último grande esforço foi oferecer à filha
menor, Lorena, uma festa de 15 anos; estava doente e morreu de infarto dois
meses depois. Lorena, sozinha, sem recursos, não teve escolha e foi para a casa
de uma irmã que morava no outro lado do rio da Prata, em José León Suárez, nos
subúrbios de Buenos Aires.
— Peguei um ônibus
em Montevidéu, viajei a noite inteira. De madrugada, entramos em Buenos Aires
por uma rodovia, chegamos ao centro, estava amanhecendo e eu olhava pela janela
e dizia ui, Hollywood, cheguei em Hollywood, luzes, rodovia, uma mulheres que
saiam vai saber de onde com botas até os joelhos, shorts curtinhos e aquelas
botas. Eu olhava para fora, pela janela, e meus olhos pulavam, porque era
demais: "Rodovia, botas e bundas", dizia. Meu coração explodia e
dizia onde estou, o que é isto, onde me enfiei?
Em José León Suárez
também não entendia nada. Suas irmãs ficaram inquietas com a adolescente que
chegava do passado. Lorena não tinha documentos, não tinha educação, não sabia
o que fazer com sua vida.
— Comecei a
trabalhar vendendo sanduíche de linguiça na calçada da estação do trem. O dono
passava a mão na minha bunda e eu não queria dizer nada, mas um dia explodi e o
mandei para o caralho e não apareci mais. E aí comecei a catar papel. Aqui em
Suárez todos iam com carrinhos e, bem, comecei a me drogar, muito. Eu nem sabia
o que era um baseado... E todo esse submundo da pobreza, da miséria... Eu
queria me matar... E depois me aconteceu uma coisa muito linda: conheci o pai
de meus filhos. Fiquei muitos anos, 16 anos, com o pai de meus filhos. Foi uma
bela história.
O rapaz se chamava
César, trabalhava em uma fábrica, tinha uma família. Juntos construíram outra:
dois filhos biológicos, uma filha adotada. Naqueles dias de 1998, viviam em um
ranchinho que alugavam; ele fora demitido da fábrica e não sabiam mais o que
fazer para pagar o aluguel. E, além disso, Lorena sempre quisera ter alguma
coisa que fosse dela: um pedaço de terra. Mas naquela tarde ele não queria participar
da ocupação. Ela insistia:
— Eu já estava de
saco cheio, só isso. Sempre fazia tudo direito, tudo bem, e continuava indo
mal, nunca tinha nada. Mas o Fraco não queria quebrar a lei, queria fazer tudo
direito. E ainda mais quando viu o que eram essas terras, um lixão meio
inundado, tudo cheio de merda, de barro, ratos imensos. Foi a primeira vez que
nos separamos.
Naquela tarde, cada
um ocupava o que podia. Lorena lembra daquilo com carinho. As pessoas se
ajudavam: venha por aqui, se enfie neste lugar, vamos, do que precisa? A
princípio, cada um ficou com um lote de 30 por 30; depois viram que assim não
daria para todo mundo e decidiram cortá-los pela metade: 30 por 15 e aí sim.
Começaram a delinear as ruas, o espaço onde algum dia estariam as calçadas;
semanas de trabalho, de entusiasmo. E de conflitos: havia alguns que os
ocupavam para vende-los aos que chegassem depois, mas os vizinhos tentavam
impedi-los.
— Quando eu ficava sabendo
que alguém estava ali para fazer negócios, que é o que os moradores chamam de companheiros,
dizia a eles vamos lá e ficávamos no lote que nos dávamos uma família, não
permitíamos que fosse vendido até que enfiávamos uma família. Todos tínhamos
toldos, vivemos quase seis meses assim. Para sobreviver, os que estávamos ali
nos organizávamos em grupos para acender uma fogueira e poder cozinhar, porque
a polícia não nos deixava entrar com madeira, não nos deixava entrar com
chapas. Também tínhamos água, a água que havia era podre, houve muita hepatite.
Organizamos o sopão popular, começamos a ver como poderíamos trazer água; no
começo, o assentamento é muito difícil. Aí comecei a ver que eu podia fazer
algumas coisas.
Algum tempo depois,
alguém se deu conta de que um bairro sem nome não é um bairro. Discutiram a
questão em uma assembleia de moradores. Vários quiseram batizá-lo de José Luis
Cabezas, nome de um fotógrafo que um milionário ligado a Carlos Menem havia
mandado matar um ano antes. Mas acabaram decidindo que se chamaria Oito de
Maio, porque foi esse o dia em que finalmente haviam se atrevido a ocupá-lo, o
dia em que começou.
Nos meses seguintes,
chegaram milhares de pessoas: todas as terras vazias — os lixões, os pântanos —
dos arredores foram se transformando em bairros. Com o tempo, César aceitou
viver por um tempo no terreno ocupado e se reconciliou com Lorena. Não tinham
muitas fontes de renda; havia dias em que não conseguiam comer o necessário:
catavam, cartoneabam. Cartonear é um verbo novo do idioma dos argentinos: não
tem mais de 20 anos. É, em síntese, a forma politicamente correta, descafeinada,
de chamar aqueles que vivem de chafurdar no lixo alheio, os que costumam chamar
a si mesmos com a palavra antiga: cirujas, catadores.
Lorena costumava ir
a um bairro elegante da capital, Belgrano R., “R” de residencial. Alguns
vizinhos também faziam a viagem; entre eles, os pais de Noelia.
— Quando Noelia
tinha 5 ou 6 anos, há muito tempo, vinha a um centro comunitário que havíamos
armado no bairro. Eu fazia uma oficina com as crianças e me lembro de que
estávamos falando de sonhos, do que cada um sonhava, e Noelia fez um desenho
meio estranho. Eu não entendia nada de desenho e lhe pedi que me explicasse.
"Este é um McDonald's, tia." Eu lhe disse: "Esse é seu
sonho?" "Sim, comer, mas lá dentro, né." E apontava para dentro.
Porque a verdade é que estava acostumada a comer do saquinho do McDonald's, do
lixo do McDonald's, mas queria comer lá dentro — diz Lorena, e que o McDonald's
era “São McDonald's” porque de lá saía o hambúrguer mais lindo. "Até hoje
o lixo do McDonald's é o mais limpo de todos", diz. Mas Noelia queria
comer lá dentro.
Então, há uns dez
anos, a maioria dos moradores do bairro Oito de Maio subia a Montanha, esse
lugar que ainda chamam de Montanha, para cirujear.
— Você se enche de
coragem. Se eu lhe disser negro, enfie-se naquela montanha de lixo que está
ali, você vai se animar? Posso lhe garantir que não. Vai ter de fazer das
tripas coração e vai ter muito nojo e vai vomitar e vai dizer eu não posso
estar aqui.
A montanha de lixo
tem 5 ou 6 metros de altura, 20 de base, é uma verdadeira porcaria: todo tipo
de dejetos jorrando, pegajosos, aquele cheiro de inferno.
— Mas se você
estiver com muita fome, vai fazer o que tiver de fazer, azar, e no final nem
vai perceber. É a necessidade... A única coisa que nos mobiliza para nos
organizarmos, para lutar, para ter uma terra e morrer de fome. Preciso e faço.
Não somos muito conscientes, não temos muita consciência de trabalhar aqui. Se
fôssemos muito conscientes, não estaríamos aqui.
Aqui é a planta
corporativa de processamento de lixo, ao pé da Montanha, que Lorena dirige.
Planta de processamento é um grande nome: é um galpão repleto de lixo,
montanhas de lixo ao redor, várias dúzias de homens e mulheres separando-o,
preparando-o para vender. São os que se livraram de ter de escalar a Montanha
todos os dias: cirujas com trabalho
fixo. A Argentina é um país onde tudo pode se institucionalizar; o mundo atual
é um mundo onde tudo pode.
— Por quê? Se fossem
muito conscientes, o que fariam?
— Não sei, outra
coisa. Nós nem pensamos em quanto tempo vamos levar para morrer trabalhando
aqui... É terrível porque a vida de todos os que trabalhamos no ramo do lixo,
em tudo o que é o setor... Estamos empesteados, muito empesteados...
Trabalhamos com os ratos, veja as condições. Mas você tem de resolver a questão
do rango hoje. Quando tem fome, não pode parar e ficar olhando essas coisas —
diz Lorena.
Com a crise de 2001
e o aumento das ocupações e a falta de dinheiro, a quantidade de cirujas se multiplicou de repente — e
sua insistência e seu desespero: contam que os guardas do lixão ficaram mais
violentos, expulsa desespero: contam que os guardas do lixão ficaram mais
violentos, expulsavam a tiros os que tentavam entrar. Então os cirujas começaram a assaltar os
caminhões que chegavam. A repressão também aumentou e se espalhou pelos bairros
próximos: havia cassetetes, tiros; espancados, feridos.
A polícia
aperfeiçoou, dizem, sua metodologia: às vezes, deixavam os cirujas entrar e os agarravam quando saiam, para lhes tomar o que
haviam encontrado — para depois vender nas aldeias. Alguns policiais, dizem
ainda os cirujas, lhes cobravam para
deixá-los entrar: em dinheiro, em mercadoria, em sexo.
Até o dia 15 de
março de 2004: naquela noite, dois gêmeos de 16 anos, Federico e Diego Duarte,
entraram, como em muitas outras noites, para cirujear na Montanha. Quando a polícia apareceu, se esconderam
debaixo de uns papelões em uma pilha de lixo. Federico viu um caminhão
descarregando cataratas de sebo uns metros mais além, onde seu irmão devia
estar; quando a polícia foi embora e ele conseguiu sair, o procurou por todos
os lugares. No dia seguinte, sua irmã Alicia denunciou seu desaparecimento à
polícia. Não lhe deram muita importância. Dois dias depois, quando um fiscal
ordenou que o rastreassem, já era tarde.
O corpo de Diego
Duarte nunca apareceu, e o caso se transformou em um escândalo que os jornais
nacionais repisaram. Em protesto, o Caminho do Bom Ar — que atravessa os
terrenos do Ceamse — foi bloqueado por organizações piqueteiras: alguns dias
depois, centenas de cirujas
incendiaram galpões do prédio. Por fim, a empresa negociou: ficou acertado que
a cada dia, durante uma hora, a partir das cinco da tarde, os cirujas poderiam entrar na Montanha. Era
um modo de sancionar, de tornar institucional, uma coisa que até então fora
clandestina e marginal: que milhares de argentinos revolvessem o lixo para
procurar comida.
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