Sobre o aborto (Augustus Nicodemus)
O ensino bíblico
O assunto é particularmente agudo para os cristãos comprometidos com a Palavra de Deus. É verdade que não há um preceito legal na Bíblia proibindo diretamente o aborto, como "Não abortarás". Mas a razão é clara. Era tão inconcebível que uma mulher israelita desejasse um aborto que não havia necessidade de proibi-lo explicitamente na lei de Moisés. Crianças era consideradas como um presente ou herança de Deus (Gn 33.5; Sl 113.9; 127.3). Era Deus quem abria a madre e permitia a gravidez (Gn 29.33; 30.22; 1 Sm. 1.19-20). Não ter filhos era considerado uma maldição, já que o nome de família do marido não poderia ser perpetuado (Dt 25.6; Rt 4.5). O aborto era algo tão contrário à mentalidade israelita que bastava um mandamento genérico, "Não matarás" (Êx 20.13).
Mas os tempos mudaram. A sociedade ocidental moderna vê filhos como empecilho à concretização do sonho de realização pessoal do casal, da mulher em especial, de ter uma boa posição financeira, de aproveitar a vida, de ter lazer, e de trabalhar. A Igreja, entretanto, deve guiar-se pela Palavra de Deus, e não pela ética da sociedade onde está inserida.
A humanidade do feto
Há dois pontos cruciais em torno dos quais gira as questões éticas e morais relacionadas com o aborto provocado. O primeiro é quanto à humanidade do feto. Esse ponto tem a ver com a resposta à pergunta: quando é que, no processo de concepção, gestação e nascimento, o embrião se torna um ser humano, uma pessoa, adquirindo assim o direito à vida?
Muitos que são a favor do aborto argumentam que o embrião (e depois o feto), só se torna um ser humano após determinado período de gestação, antes do qual abortar não seria assassinato. Por exemplo, o aborto é permitido na Inglaterra até 7 meses de gestação. Outros são mais radicais. Em 1973 a Suprema Corte dos Estados Unidos passou uma lei permitindo o aborto, argumentando que uma criança não nascida não é uma pessoa no sentido pleno do termo e, portanto, não tem direito constitucional à vida, liberdade e propriedades.
Entretanto, muitos biólogos, geneticistas e médicos concordam que a vida biológica inicia-se desde a concepção. As Escrituras confirmam este conceito ensinando que Deus considera sagrada vida de crianças não nascidas. Veja, por exemplo, Êx 4.11; 21.21-25; Jó 10.8-12; Sl 139.13-16; Jr 1.5; Mt 1.18 e Lc 1.39-44. Apesar de algumas dessas passagens terem pontos de difícil interpretação, não é difícil de ver que a Bíblia ensina que o corpo, a vida e as faculdades morais do homem se originam simultaneamente na concepção.
Os Pais da Igreja, que vieram logo após os apóstolos, reconheceram esta verdade, como aparece claramente nos escritos de Tertuliano[1], Jerônimo[2], Agostinho[3], Clemente de Alexandria[4] e outros. No Império Romano pagão, o aborto era praticado livremente, mas os cristãos se posicionaram contra a prática. Em 314 o concílio de Ancira[5] (moderna Ankara) decretou que deveriam ser excluídos da ceia do Senhor durante 10 anos todos os que procurassem provocar o aborto ou fizesse drogas para provocá-lo.
Anteriormente, o sínodo de Elvira (305-306)[6] havia excluído até a morte os que praticassem tais coisas. Assim, a evidência biológica e bíblica é que crianças não nascidas são seres humanos, são pessoas, e que matá-las é assassinato.
A santidade da vida
O segundo ponto tem a ver com a santidade da vida. Ainda que as crianças fossem reconhecidas como seres humanos, como pessoas, antes de nascer, ainda assim suas vidas estariam ameaçadas pelo aborto. Vivemos em uma sociedade que perdeu o conceito da santidade da vida.
O conceito bíblico de que o homem é uma criatura especial, feito à imagem de Deus, diferente de todas as demais formas de vida, e que possui uma alma imortal, tem sido substituído pelo conceito humanista do evolucionismo, que vê o homem simplesmente como uma espécie a mais, o Homo sapiens, sem nada que realmente o faça distinto das demais espécies. A vida humana perdeu seu valor. O direito a continuar existindo não é mais determinado pelo alto valor que se dava ao homem por ser feito à imagem de Deus, mas por fatores financeiros, sociológicos e de conveniência pessoal, geralmente utilitaristas e egoístas.
Em São Paulo, por exemplo, um médico declarou "Faço aborto com o mesmo respeito com que faço uma cesárea. É um procedimento tão ético como uma cauterização". E perguntado se faria aborto em sua filha, respondeu: "Faria, se ela considerasse a gravidez inoportuna por algum motivo. Eu mesmo já fiz sete abortos de namoradas minhas que não podiam sustentar a gravidez" (A Folha de São Paulo, 29 de agosto de 1997).
Conclusão
Esses pontos devem ser encarados por todos os cristãos. Evidentemente, existem situações complexas e difíceis, como no caso da gravidez de risco e do estupro.
Meu ponto é que as soluções sempre devem ser a favor da vida. C. Everett Koop, ex-cirurgião geral dos Estados Unidos, escreveu: “Nos meus 36 anos de cirurgia pediátrica, nunca vi um caso em que o aborto fosse a única saída para que a mãe sobrevivesse”. Sua prática nestes casos raros era provocar o nascimento prematuro da criança e dar todas as condições para sua sobrevivência.
Ao mesmo tempo, é preciso que a Igreja se compadeça e auxilie os cristãos que se veem
diante deste terrível dilema. Condenação não irá substituir orientação, apoio e acompanhamento. A dor, a revolta e o sofrimento de quem foi estuprada não se resolverá matando o ser humano concebido em seu ventre.
Por outro lado, a Igreja não pode simplesmente abandonar à sua sorte as estupradas grávidas que resolvem ter a criança. É preciso apoio, acompanhamento e orientação.
[1] Em nosso caso, para os cristãos, a morte foi de uma vez por todas proibida. Não podemos nem mesmo destruir o feto no útero, porque, mesmo então, o ser humano retira sangue de outras partes de seu corpo para sua subsistência. Impedir um nascimento é simplesmente uma forma mais rápida de matar um homem, não importando se mata a vida de quem já nasceu, ou põe fim a de quem está para nascer. Esse é um homem que está se formando, pois tendes o fruto já em sua semente. (Tertuliano, Apologia 4.8). Veja, também: https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20090711_aborto-procurato_po.html
[3] Por vezes esta crueldade libidinosa, ou esta libidinagem cruel vão até ao ponto de arranjarem venenos que tornam as pessoas estéreis. E se o resultado desejado não é alcançado desse modo, a mãe extingue a vida e expele o feto que estava nas suas entranhas; de tal maneira que o filho morre antes de ter vivido; de sorte que, se o filho já vivia no seio materno, ele é matado antes de nascer. (Fonte: http://www.documentacatholicaomnia.eu/03d/0354-0430,_Augustinus,_De_Nuptiis_Et_Concupiscentia_[Schaff],_EN.pdf
[4] O Pedagogo: https://doceru.com/doc/nexv8xsc
[5] Concílio de Ancira, cânon 21: “As mulheres que conceberam como consequência de seu adultério e logo abortaram, e se dedicam a preparar venenos que induzem ao aborto, segundo uma regra prévia se os proíbe comungar dos Santos Mistérios até a morte – e esta decisão se cumpre até agora nas igrejas. Não obstante buscando uma alternativa mais condescendente, temos decidido que passem dez anos em arrependimento, segundo as etapas estabelecidas.”
Fonte: http://averdadeiraeunicaigrejadecristo.blogspot.com/2011/12/canones-do-concilio-de-ancira.html
[6] Concílio de Elvira, cânon 63: “Se uma mulher concebe em adultério e depois tem um aborto, ela não pode comungar de novo, mesmo quando a morte se aproxima, porque ela pecou duas vezes.”
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