SERMÃO DA SEXAGÉSIMA - Padre Antonio Vieira

 

Jean Francois Millet "The sower" 


LUCAS 8

1 E aconteceu, depois disso, que andava em todas as cidades e vilas, pregando e anunciando as boas novas[1] do Reino de Deus; e os doze iam com ele,
2 e também algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos e de enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual saíram sete demônios;
3 e Joana, mulher de Cuza, superintendente de Herodes, e Suzana, e muitas outras que ministravam-lhe com seus bens.
4 E, ajuntando-se uma grande multidão, e vindo ter com ele gente de todas as cidades, disse por parábolas[2]:
Um semeador[3] saiu a semear a sua semente[4],[5], e, quando semeava, caiu alguma junto do caminho e foi pisada, e as aves[6] do céu a comeram.
6 E outra caiu sobre a rocha e, nascida, secou-se, pois que não tinha umidade.
7 E outra caiu entre espinhos, e, crescendo com ela os espinhos, a sufocaram;
8 E outra caiu em boa terra e, nascida, produziu fruto, cento por um. Dizendo ele estas coisas, clamava: Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça.
9 E os seus discípulos o interrogaram, dizendo: Que parábola é esta?
10 E ele disse: A vós vos é dado conhecer os mistérios[7] do Reino de Deus, mas aos outros, por parábolas, para que, vendo, não vejam e, ouvindo, não entendam.
11 Esta é, pois, a parábola: a semente é a palavra de Deus;
12 e os que estão junto do caminho, estes são os que ouvem; depois, vem o Caluniador e tira-lhes do coração a palavra, para que não suceda que, crendo, sejam salvos.
13 e os que estão sobre a rocha, estes são os que, ouvindo a palavra, a recebem com alegria, mas, como não têm raiz, apenas crêem por algum tempo e, no tempo da tentação, afastam-se;
14 e a que caiu entre espinhos, esses são os que ouviram, e, indo por diante, são sufocados com os cuidados, as riquezas[8] e os prazeres[9] da vida[10], e não dão fruto com perfeição;
15 e a que caiu em boa terra, esses são os que, ouvindo a palavra, a conservam num coração reto e bom e dão fruto com perseverança[11].





[1] Anunciando as boas novas. (Gr. εὐαγγελίζω). Daí, a origem da palavra “evangelizar”. Verbo formado por εὖ, advérbio que significa “bom”, “bem” + ἄγγελος, “mensagem”. Assim, a palavra significa literalmente “anunciar o bem”. Há 54 ocorrências no NT. Em Lucas, temos em Lc 1.19; 2.10; 3.18; 4.18,43; 7.22; 8.1; 9.6; 16.16; 20.1.
[2] Parábolas. (Gr. παραβολή). Há 50 ocorrências no NT. Em Lucas, temos em Lc 4.23; 5.36; 6.39; 8.4,9,10,11; 12.16,41; 13.6; 14.7; 15.3; 18.1,9; 19.11; 20.9,19; 21.29.
[3] Semeador. (Gr. σπείρω). Há 52 ocorrências no NT. Em Lc, temos em Lc 8.5(2x); 12.24; 19.21,22.
[4] Semente. (Gr. σπόρος). Há 6 ocorrências no NT: Mc 4.26,27; Lc 8.5,11; 2 Co 9.10(2x).
[5] Na Vulgata o versículo começa com “exiit qui semĭnat semināre semen suum”.
[6] Aves. (Gr. πετεινόν). Há 14 ocorrências no NT: Mt 6.26; 8.20; 13.4,32; Mc 4.4,32; Lc 8.5; 9.58; 12.24; 13.19; At 10.12; 11.6; Rm 1.23; Tg 3.7.
[7] Mistérios. (Gr. μυστήριον). Há 28 ocorrências no NT: Mt 13.11; Mc 4.11; Lc 8.10; Rm 11.25; 16.25; 1 Co 2.1,7; 4.1; 13.2; 14.2; 15.51; Ef 1.9; 3.3,4,9; 5.32; 6.19; Cl 1.26,27; 2.2; 4.3; 2 Ts 2.7; 1 Tm 3.9,16; Ap 10.7; 17.5,7.
[8] Riquezas. (Gr. πλοῦτος). Riqueza, fortuna, possessões, abundância de bens. Há 22 ocorrências no NT: Mt 13.22; Mc 4.19; Lc 8.14; Rm 2.4; 9.23; 11.12(2x),33; 2 Co 8.2; Ef 1.7,18; 2.7; 3.8,16; Fp 4.19; Cl 1.27; 2.2; 1 Tm 6.17; Hb 11.26; Tg 5.2; Ap 5.12; 18.17.
[9] Prazeres. (Gr. ἡδονή). Há 5 ocorrências no NT: Lc 8.14; Tt 3.3; Tg 4.1,3; 2Pe 2.13. Na LXX, duas ocorrências: Nm 11.8 (traduzindo ṭa‛am, sabor); Pv 17.1 (traduzindo shalvâh, tranqüilidade).
[10] Vida. (Gr. βίος). Vida, modo de viver, existência, patrimônio, bens. Há 10 ocorrências no NT: Mc 12.44 (bens); Lc 8.14(vida),43(bens); 15.12(bens),30(bens); 21.4(bens); 1 Tm 2.2(“vida”, num sinônimo com ζωή); 2 Tm 2.4 (idem a 1 Tm 2.2); 1 Jo 2.16(vida); 3.17(bens). Em Lc 15.12, pode-se traduzir βίος por “bens”. Veja ζωή – Lc 10.25, nota.
[11] Perseverança. (Gr. ὑπομονή). “pertinácia, constância, perseverança, firmeza, obstinação, persistência, teimosia, tenacidade”. Há 32 ocorrências no NT: Lc 8.15; 21.19; Rm 2.7; 5.3,4; 8.25; 15.4,5; 2 Co 1.6; 6.4; 12.12; Cl 1.11; 1 Ts 1.3; 2 Ts 1.4; 3.5; 1 Tm 6.11; 2 Tm 3.10; Tt 2.2; Hb 10.36; 12.1; Tg 1.3,4; 5.11; 2 Pe 1.6(2x); Ap 1.9; 2.2,3,19; 3.10; 13.10; 14.12. 


Sermão da Sexagésima Padre António Vieira
Pregado na Capela Real, no ano de 1655

Semen est verbum Dei. S. Lucas, VIII, 11.

I
E se quisesse Deus que este tão ilustre e tão numeroso auditório saísse hoje tão desenganado da pregação, como vem enganado com o pregador! Ouçamos o Evangelho, e ouçamo-lo todo, que todo é do caso que me levou e trouxe de tão longe.

Ecce exiit qui seminat, seminare. Diz Cristo que «saiu o pregador evangélico a semear» a palavra divina. Bem parece este texto dos livros de Deus. Não só faz menção do semear, mas também faz caso do sair: Exiit, porque no dia da messe hão-nos de medir a semeadura e hão-nos de contar os passos. O Mundo, aos que lavrais com ele, nem vos satisfaz o que dispendeis, nem vos paga o que andais. Deus não é assim. Para quem lavra com Deus até o sair é semear, porque também das passadas colhe fruto. Entre os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear são os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão; os que semeiam sem sair, são os que se contentam com pregar na Pátria. Todos terão sua razão, mas tudo tem sua conta. Aos que têm a seara em casa, pagar-lhes-ão a semeadura; aos que vão buscar a seara tão longe, hão-lhes de medir a semeadura e hão-lhes de contar os passos. Ah Dia do Juízo! Ah pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais paço; os de lá, com mais passos: Exiit seminare.
Mas daqui mesmo vejo que notais (e me notais) que diz Cristo que o semeador do Evangelho saiu, porém não diz que tornou porque os pregadores evangélicos, os homens que professam pregar e: propagar a Fé, é bem que saiam, mas não é bem que tornem. Aqueles animais de Ezequiel que tiravam pelo carro triunfal da glória de Deus e significavam os pregadores do Evangelho que propriedades tinham? Nec revertebantur, cum ambularent: «Uma vez que iam, não tornavam». As rédeas por que se governavam era o ímpeto do espírito, como diz o mesmo texto: mas esse espírito tinha impulsos para os levar,não tinha regresso para os trazer; porque sair para tornar melhor é não sair. Assim arguis com muita razão, e eu também assim o digo. Mas pergunto: E se esse semeador evangélico, quando saiu, achasse o campo tomado; se se armassem contra ele os espinhos; se se levantassem contra ele as pedras, e se lhe fechassem os caminhos que havia de fazer? Todos estes contrários que digo e todas estas contradições experimentou o semeador do nosso Evangelho. Começou ele a semear (diz Cristo), mas com pouca ventura. «Uma parte do trigo caiu entre espinhos, e afogaram-no os espinhos»: Aliud cecidit inter spinas et simul exortae spinae suffocaverunt illud. Outra parte caiu sobre pedras, e secou-se nas pedras por falta de humidade»: Aliud cecidit super petram, et natum aruit, quia non habebat humorem. «Outra parte caiu no caminho, e pisaram-no os homens e comeram-no as aves»: Aliud cecidit secus viam, et conculcatum est, et volucres coeli comederunt illud. Ora vede como todas as criaturas do Mundo se armaram contra esta sementeira. Todas as criaturas quantas há no Mundo se reduzem a quatro géneros: criaturas racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como os animais; criaturas vegetativas, como as plantas; criaturas insensíveis, como as pedras; e não há mais. Faltou alguma destas que se não armasse contra o semeador? Nenhuma. A natureza insensível o perseguiu nas pedras, a vegetativa nos espinhos, a sensitiva nas aves, a racional nos homens. E notai a desgraça do trigo, que onde só podia esperar razão, ali achou maior agravo. As pedras secaram-no, os espinhos afogaram-no, as aves comeram-no; e os homens? Pisaram-no: Conculcatum estAb hominibus (diz a Glossa).

Quando Cristo mandou pregar os Apóstolos pelo Mundo, disse-lhes desta maneira: Euntes in mundum universum, praedicate omni creaturae: «Ide, e pregai a toda a criatura». Como assim, Senhor?! Os animais não são criaturas?! As árvores não são criaturas?! As pedras não são criaturas?! Pois hão os Apóstolos de pregar às pedras?! Hão-de pregar aos troncos?! Hão-de pregar aos animais?! Sim, diz S. Gregório, depois de Santo Agostinho. Porque como os Apóstolos iam pregar a todas as nações do Mundo, muitas delas bárbaras e incultas, haviam de achar os homens degenerados em todas as espécies de criaturas: haviam de achar homens homens, haviam de achar homens brutos, haviam de achar homens troncos, haviam de achar homens pedras. E quando os pregadores evangélicos vão pregar ar a toda a criatura, que se armem contra eles todas as criaturas?! Grande desgraça!

Mas ainda a do semeador do nosso Evangelho não foi a maior. A maior é a que se tem experimentado na seara aonde eu fui, e para onde venho. Tudo o que aqui padeceu o trigo, padeceram lá os semeadores. Se bem advertirdes, houve aqui trigo mirrado, trigo afogado, trigo comido e trigo pisado. Trigo mirrado: Natum aruit, quia non habebat humorem; trigo afogado: Exortae spinae suffocaverunt illud; trigo comido: Volucres caeli comederunt illud; trigo pisado: Conculcutum est. Tudo isto padeceram os semeadores evangélicos da missão do Maranhão de doze anos a esta parte. Houve missionários afogados, porque uns se afogaram na boca do grande rio das Amazonas; houve missionários comidos, porque a outros comeram os bárbaros na ilha dos Aroãs; houve missionários mirrados, porque tais tornaram os da jornada dos Tocatins, mirrados da fome e da doença, onde tal houve, que andando vinte e dois dias perdido nas brenhas matou somente a sede com o orvalho que lambia das folhas. Vede se lhe quadra bem oNotum aruit, quia non habebant humorem! E que sobre mirrados, sobre afogados, sobre comidos, ainda se vejam pisados e perseguidos dos homens: Conculcatum est! Não me queixo nem o digo, Senhor, pelos semeadores; só pela seara o digo, só pela seara o sinto. Para os semeadores, isto são glórias: mirrados sim, mas por amor de vós mirrados; afogados sim, mas por amor de vós afogados; comidos sim, mas por amor de vós comidos; pisados e perseguidos sim, mas por amor de vós perseguidos e pisados.

Agora torna a minha pergunta: E que faria neste caso, ou que devia fazer o semeador evangélico, vendo tão mal logrados seus primeiros trabalhos? Deixaria a lavoura? Desistiria da sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, só porque tinha lá ido? Parece que não. Mas se tornasse muito depressa a buscar alguns instrumentos com que alimpar a terra das pedras e dos espinhos, seria isto desistir? Seria isto tornar atrás? -- Não por certo. No mesmo texto de Ezequiel com que arguistes, temos a prova. Já vimos como dizia o texto, que aqueles animais da carroça de Deus, «quando iam não tornavam»: Nec revertebantur, cum ambularent. Lede agora dois versos mais abaixo, e vereis que diz o mesmo texto que «aqueles animais tornavam, e semelhança de um raio ou corisco»: Ibant et revertebantur in similitudinem fulgoris coruscantis. Pois se os animais iam e tornavam à semelhança de um raio, como diz o texto que quando iam não tornavam? Porque quem vai e volta como um raio, não torna. Ir e voltar como raio, não é tornar, é ir por diante. Assim o fez o semeador do nosso Evangelho. Não o desanimou nem a primeira nem a segunda nem a terceira perda; continuou por diante no semear, e foi com tanta felicidade, que nesta quarta e última parte do trigo se restauraram com vantagem as perdas do demais: nasceu, cresceu, espigou, amadureceu, colheu-se, mediu-se, achou-se que por um grão multiplicara cento: Et fecit fructum centuplum.

Oh que grandes esperanças me dá esta sementeira! Oh que grande exemplo me dá este semeador! Dá-me grandes esperanças a sementeira porque, ainda que se perderam os primeiros trabalhos, lograr-se-ão os últimos. Dá-me grande exemplo o semeador, porque, depois de perder a primeira, a segunda e a terceira parte do trigo, aproveitou a quarta e última, e colheu dela muito fruto. Já que se perderam as três partes da vida, já que uma parte da idade a levaram os espinhos, já que outra parte a levaram es pedras, já que outra parte a levaram os caminhos, e tantos caminhos, esta quarta e última parte, este último quartel da vida, porque se perderá também? Porque não dará fruto? Porque não terão também os anos o que tem o ano? O ano tem tempo para as flores e tempo para os frutos. Porque não terá também o seu Outono a vida? As flores, umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva o vento; aquelas poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto, só essas são as venturosas, só essas são as que aproveitam, só essas são as que sustentam o Mundo. Será bem que o Mundo morra à fome? Será bem que os últimos dias se passem em flores? -- Não será bem, nem Deus quer que seja, nem há-de ser. Eis aqui porque eu dizia ao princípio, que vindes enganados com o pregador. Mas para que possais ir desenganados com o sermão, tratarei nele uma matéria de grande peso e importância. Servirá como de prólogo aos sermões que vos hei-de pregar, e aos mais que ouvirdes esta Quaresma.




Fonte: Biblioteca Online de Ciências da Comunicação

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